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Raízes brasileiras

O chef Rodrigo Oliveira transformou o antigo empório de produtos nordestinos da família num restaurante que perpetua tradições da culinária nacional *

Por Aline Alves

Faltam alguns minutos para o meio-dia e restam poucas mesas vazias no restaurante Mocotó. Nos últimos tempos tem sido assim, principalmente aos finais de semana e neste domingo não será diferente – os 100 lugares desta antiga Casa do Norte, na interiorana Vila Medeiros, na capital paulista, são ocupados rapidamente. O recorde de comensais foi num sábado: 800 pessoas estiveram ali em busca dos pratos do sertão nordestino preparados pelo chef Rodrigo Oliveira.

Uma das receitas mais pedidas é a que dá nome e fama ao restaurante, o caldo de mocotó. Mas a iguaria não foi criada por Rodrigo, e sim por seu pai, José Almeida. Nascido em Mulungu, um vilarejo no interior de Pernambuco, Almeida chegou a São Paulo há quatro décadas. Depois de trabalhar em vários lugares diferentes, em 1973, em sociedade com dois irmãos, abriu a Casa do Norte Irmãos Almeida (empório de produtos nordestinos). E, um ano mais tarde, montou sua própria casa, na mesma rua da zona norte onde o restaurante está instalado atualmente.
Com o aumento da clientela que lotava o lugar para apreciar o caldo de mocotó preparado por seu José, em 1979, foi aberta uma “filial” logo em frente, e 15 anos depois a matriz foi fechada. Assim, definitivamente, o Mocotó se tornava um restaurante – modesto, com apenas dez mesas, cinco pratos no cardápio e três funcionários.

Revolução das panelas
Se hoje o Mocotó tem três salões, cem lugares e uma equipe de 30 pessoas, é porque Rodrigo Oliveira fez uma pequena – e ousada – revolução ali. “Paulistano de nascimento e pernambucano de pai, mãe e coração”, o chef de 27 anos acompanha de perto rotina do estabelecimento da família desde os 14. Apesar de fazer de tudo no restaurante, a cozinha era o que mais atraía Rodrigo. Sempre quis meter a colher nas panelas, mas o pai não deixava, muito menos queria que o filho “trabalhasse num boteco”.

Chegou a começar duas faculdades, de Engenharia Ambiental e de Gestão Ambiental. A primeira foi interrompida quando o pai viajou para uma temporada de três meses em Pernambuco. Na ausência de seu José, o jovem cozinheiro abandonou o curso e fez uma reforma no restaurante. “Eu não podia deixar do jeito que estava. O lugar tinha 30 anos, estava desmanchando”, justifica. Um ano depois, mais uma viagem do pai e mais uma reforma – que ampliou, mas não tirou o clima original e simples da casa. “Foi nessa época que decidi exatamente o que queria fazer”, conta Rodrigo.
Durante o segundo curso conheceu uma namorada, cujo irmão, o futuro chef Luiz Emanuel, do restaurante Allez Allez, em São Paulo, cursava gastronomia e aí teve um outro tipo de contato com esse universo. “Comecei a ler tudo o que podia, revistas, livros. Nessa época nem fazia idéia de que existiam restaurantes em São Paulo. Era meio um menino da roça, mal saía daqui. Para mim era impensável que um prato de comida pudesse custar mais de R$ 10”, diz. Agora Rodrigo Oliveira entrava na terceira – e até o momento última, faculdade, a de gastronomia. Aprendeu novas técnicas, aprimorou seu conhecimento prático e se encantou ainda mais com a culinária. “A faculdade de gastronomia foi um grande divisor de águas, foi onde eu conheci tudo”, afirma. E este aprendizado rapidamente se refletiu em mudanças, mas não muito fáceis de acontecer, no cardápio do restaurante.
Mas, a alma e as raízes sertanejas do Mocotó permaneceram intactas e até mais valorizadas. “A cozinha que se tem ali é a tradicional, pernambucana, do sertão, mas feita com certa modernidade, nas técnicas e nos ingredientes. O Rodrigo aplicou os conhecimentos contemporâneos, que aprendeu na faculdade, para manter a tradição do restaurante do pai”, afirma o crítico de gastronomia Josimar Melo, o primeiro a visitar e escrever sobre o restaurante. O jornalista não é o único que rende elogios ao lugar.

Quem entra no Mocotó se depara com uma parede repleta de quadros com reportagens, sempre muito positivas. Depois de Josimar Melo, o restaurante já foi visitado pelos principais veículos da imprensa paulistana e por importantes publicações internacionais, como a revista norte-americana Food&Wine, e os jornais El País, da Espanha, e Financial Times, da Inglaterra. O crítico gastronômico do jornal inglês, Nicolas Lander, esteve no Mocotó em novembro de 2007. Num texto sobre a gastronomia paulistana, destaca os mais de 300 tipos de cachaças existentes no restaurante e a “combinação de uma comida amigável, uma equipe sorridente e clientes simplesmente dispostos a se divertir”. Os chefs Mara Salles, Alex Atala e Laurent Suaudeau, referências da gastronomia nacional, também já experimentaram – e se tornaram admiradores da cozinha do Mocotó.

Culinária autêntica
Dezenas de entradas, petiscos, pratos principais, sobremesas, sucos e drinques típicos do sertão do país compõem o cardápio do restaurante. “O torresmo de lá é o melhor do Brasil”, diz Josimar Melo sobre o clássico de nossa culinária especialmente crocante no Mocotó. O prato mais vendido da casa é o baião-de-dois. Outros ícones que conquistam o paladar dos visitantes são a mocofava (caldo de mocotó com favas), o escondidinho de carne-seca, o atolado de bode e a carne-de-sol assada. Para uma refeição ou simplesmente para petiscar saboreando uma das centenas de cachaças de todas as regiões do país, as receitas dali revelam a riqueza dos sabores do interior do Brasil. “Em São Paulo há poucos restaurantes brasileiros. É preciso ter mais chefs com técnica e conhecimento para fazer esse trabalho de perpetuação da cozinha brasileira”, ressalta o crítico de gastronomia.

Entre as sobremesas, se destacam o sorvete de rapadura e a musse de chocolate com cachaça, receitas exclusivas, criadas por Rodrigo Oliveira. “A base da cozinha é toda do meu pai, os cozidos, os ensopados. Fui buscando os ingredientes e colocando a serviço dessa cozinha, com base em tudo o que eu vivi, em pesquisas, na faculdade, em restaurantes. O que faço não é uma releitura, é a evolução natural das coisas. São pratos mais saborosos, mais leves, com porções mais comedidas e explorando o potencial de cada ingrediente”, explica o paulistano sobre sua culinária. Para conhecer ainda mais a cozinha do nordeste do país, há dois anos, o chef fez uma viagem de carro, de São Paulo ao Ceará. Num trajeto em ziguezague, entre o sertão e o litoral, foram 50 dias visitando mercados, feiras, festas e restaurantes.

Se aos finais de semana, famílias do bairro e de outras partes, e gourmets de São Paulo lotam a casa, nos demais dias, o restaurante recebe um público variado, formado principalmente por quem mora ou trabalha na região. Quem visita o Mocotó vai encontrar não só Rodrigo, mas também seu José, que aos 70 anos, trabalha diariamente no restaurante. Como ele próprio diz, é formado em “mocotologia”. Até hoje dá o tom do tempero de alguns pratos, mas se concentra na administração da casa. “Eu achei que houve muita mudança. O Rodrigo mudou tudo, mas por um lado foi bom”, diz, com reserva, o pernambucano. E antes mesmo de terminar a frase, se apressa em tirar da parede e exibir, com orgulho, um prêmio de melhor chef revelação que o filho ganhou de uma publicação especializada.

Mocotó: Av. Nossa Senhora do Loreto, 1.100, Vila Medeiros. São Paulo/SP. Tel. 11 2951-3056

 
*reportagem publicada na VOETRIP, revista de bordo da Trip Linhas Aéreas
 
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Publicado por em 23/05/2011 em Gastronomia

 

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